FRANCISCO ARIZA
Nesta revista dedicada à simbologia universal, não podiam faltar algumas reflexões sobre o importante simbolismo da Maçonaria, que representa, junto à tradição Hermética-Alquímica, a única via iniciática não religiosa que sobrevive ainda na Europa e sua área de influência cultural. E isto é assim embora, na atualidade, muitos maçons não conheçam - ou conhecem de forma muito limitada - o caráter simbólico e iniciático de sua Ordem. Alguns chegam inclusive a negar esse aspecto essencial da maçonaria, crendo que esta só persegue fins sociais e filantrópicos. Há outros, inclusive, que só vêm na riqueza simbólica da Maçonaria uma fonte inesgotável onde alimentar suas próprias fantasias "ocultistas", tão em moda hoje em dia. Sem dúvida, esta suplantação dos verdadeiros fins da Maçonaria e, por conseguinte, a infiltração das "idéias" profanas, só podia acontecer numa época que, como a nossa, vive imersa na mais profunda obscuridade intelectual e espiritual.
Devemos esclarecer que aqui se vai falar da Maçonaria
tradicional, ou seja, daquela que mantém vivos e permanentes, através dos
símbolos, dos ritos e dos mitos, os laços com as realidades cosmogônicas e
metafísicas emanadas da Grande Tradição Primordial, da qual a Maçonaria é (em
verdade) uma ramificação. No nosso entender, e considerada desta maneira, a
Maçonaria, igual a qualquer outra organização tradicional, oferece ao homem
caído e ignorante os elementos necessários para levar a cabo sua própria
regeneração e evolução espiritual. A estrutura simbólica e ritual da Maçonaria
reconhece numerosas heranças procedentes das diversas tradições que foram se
sucedendo no Ocidente durante, pelo menos, os últimos dois mil anos. E este
feito, longe de aparecer como um mero sincretismo, revela nesta Tradição uma
vitalidade e uma capacidade de síntese e de adaptação doutrinal que lhe valeu o
nome de "arca tradicional dos símbolos". Todas essas heranças foram se
integrando com o transcorrer do tempo no universo simbólico da Maçonaria,
amoldando-se a sua própria idiossincrasia particular. Procedendo de uma tradição
de construtores, não deve parecer estranho que a Maçonaria desempenhe a função
de arca receptora, pois precisamente a construção ou edificação não tem outra
função além de pôr "a coberto" ou "ao abrigo" da intempérie ou inclemência do
tempo; mas, analogamente, quando se entende a construção como algo sagrado -e
este é o caso- está claro que esta não faz outra coisa senão proteger, e
separar, do mundo profano (as trevas exteriores) tudo aquilo que corresponde ao
domínio estritamente espiritual e metafísico. Por outro lado, este é
precisamente o papel dos símbolos que aludem às idéias de receptividade e
concentração, como a própria arca, o cálice, a caverna ou o templo. Sendo, como
dissemos, uma via iniciática de origens artesanais, a Maçonaria teve uma
especial sensibilidade com relação a todas as correntes tradicionais com as
quais entrou em contato. Assim, dentre essas correntes merecem destaque, além do
Hermetismo, as que procedem do Cristianismo, do Judaísmo e da antiga tradição
greco-romana, e, mais concretamente, do Pitagorismo. Também poderíamos mencionar
a ainda mais antiga tradição egípcia, sobretudo no que se refere aos símbolos
cosmogônicos relacionados com a construção, pois, como é sabido, o antigo Egito
é, na realidade, um dos centros sagrados de onde surgiu grande parte do saber
que contribuiu para dar forma, com sua influência sobre os filósofos gregos, à
concepção do mundo que é própria da cultura ocidental. De todo modo, a herança
egípcia é transmitida à Maçonaria através, fundamentalmente, da Alquimia
hermética e do Pitagorismo. Não obstante, disso que dissemos não se deve
concluir que a Maçonaria seja o "resultado" da confluência de todas essas
tradições. Se fosse assim, a Maçonaria viria a ser uma espécie de colagem ou
museu arqueológico onde teriam abrigo todas as relíquias do passado encontradas
aqui e acolá, e catalogadas segundo sua respectiva antigüidade. Evidentemente
não é isso que queremos dizer quando falamos da herança multisecular recebida
pela Maçonaria. Cada tradição é legitimada e conformada por uma "revelação" de
ordem divina acontecida em um tempo mítico, a-histórico e atemporal.1 Tal revelação é
"única" para cada forma tradicional que se constitui a partir dela, dando-lhe
seu "selo" ou "marca" particular, sua estrutura, e, portanto, uma função e um
destino a cumprir no cenário do tempo da história.
Ocorre, por quaisquer circunstâncias, que uma tradição receba
de outra (ou outras) determinadas influências por contato ou similitude, o que
muitas vezes foi inevitável e até necessário. Mas de nenhum modo isto que dizer
que uma tradição se "transforme" em outra, pois, como ocorre com qualquer ser
vivo, cada uma compreende um nascimento, um desenvolvimento, uma maturidade, e
finalmente, uma morte. Aquilo que convencionou-se chamar de "Unidade
Transcendente das Tradições", é bem diferente de uma simples "uniformidade".
Significa, fundamentalmente, que todas - e cada uma delas - procede de uma fonte
única (a Tradição Primordial), que se manifesta não na forma ou roupagem que
possam adotar por circunstâncias de tempo e de lugar, mas, precisamente, no que
constitui a "sabedoria perene" contida no núcleo mais interno e central de cada
tradição. O que ocorre com respeito à Maçonaria é que esta não possui um caráter
religioso, o que tornou possível sua adaptação a todas as tradições, religiosas
ou não, com as quais se relacionou ao longo da história. Sua simbologia
iniciática, demonstrada na arte da construção, entre outras coisas lhe serviu de
cobertura protetora, ao mesmo tempo que lhe permitiu amoldar-se a qualquer
"dogma" religioso ou exotérico sem entrar em conflito com ele. Temos um exemplo
disso nas relações que, durante toda a Idade Média ocidental, a Maçonaria
manteve com o poder eclesiástico e com as diversas organizações iniciáticas do
esoterismo cristão. Por outro lado, se a Maçonaria, com esse espírito de
fraternidade e tolerância que a caracteriza, não houvesse acolhido em seu seio
essas diversas heranças, estas, com toda segurança se haveriam perdido
definitivamente. E foi possivelmente essa capacidade receptora que contribuiu
para fomentar essa ilusão de sincretismo que erroneamente alguns lhe atribuem. É
precisamente o contrário, pois a Maçonaria ao "reunir o disperso" não fez nada
além de conservar em suas estruturas simbólico-ritualísticas a "memória" dessas
múltiplas heranças, cumprindo com isso um papel "totalizador" que tem sua razão
de ser (e uma razão de ser profunda) neste final de ciclo que estamos vivendo.
Neste sentido, e da mesma forma que na "arca" de Noé foram guardadas, para que
não perecessem, todas as "espécies" que deviam ser conservadas durante o
cataclisma ocorrido entre dois períodos cíclicos, a "arca" maçônica também
acolhe tudo o que de válido deve conservar-se - até que, por sua vez, o ciclo
presente termine - e que constituirá os "germens" espirituais que se
desenvolverão durante o transcurso do futuro ciclo. Particularmente esta função
recapituladora assumida pela Maçonaria tradicional faz pensar que ela subsistirá
até a consumação do ciclo, o que, por outro lado, e como assinala um autor
maçon, "... está expresso simbolicamente pela fórmula ritual segundo a qual a
Loja de São João está no vale de Josafá", que, acrescentamos, é onde
simbolicamente terá lugar o que no Cristianismo se denomina o "Juízo Final"2. No mesmo sentido,
também se diz que a Loja maçônica permanece"... na mais alta das montanhas e no
mais profundo dos vales", aludindo com isso ao começo do ciclo (quando o Paraíso
se encontrava no topo da montanha do Purgatório) e ao seu final (quando a
Verdade do conhecimento, representada pelo estado edênico, "fechando-se" em si
mesma, se fez invisível à maioria dos homens, ocultando-se no "mundo
subterrâneo"). Há que se dizer, para completar esta simbologia cíclica, que o
vale corresponde à caverna, que por estar no interior da montanha se situa por
sobre um mesmo eixo que conecta a cúspide de uma com a base da outra, unindo
desta maneira o mais "alto" (ou princípio) com o mais "baixo" (ou final).
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