O
gnosticismo, enquanto racionalismo sectarista, daria base tanto ao iluminismo
quanto ao idealismo, dos quais surgiram filosofias totalitárias e materialistas
da história como o marxismo e o positivismo.
A
gnose é um dos elementos de maior difusão na cultura herética da civilização
ocidental. Desde a época do Antigo Testamento, seitas gnósticas procuravam
distorcer o sentido dos livros do Pentateuco e dos profetas. Com o advento do
Cristianismo – vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo – o número de
Igrejas que professavam a fé Cristã logo se disseminou durante todo o primeiro
século dessa era. A caritas, fundamento de toda revelação em Cristo,
passaria a pôr um sentido novo para a existência social das comunidades
espalhadas por todo o Império Romano. No território imperial, a prática da vida
Cristã seria abalada por inúmeras perseguições e rivalidades de toda ordem.
A
par disso, a proliferação de inúmeras Igrejas – tal como expõem as Epístolas
Paulinas e o livro de Atos dos Apóstolos – foi acompanhada por um crescimento
vertiginoso de seitas heréticas e gnósticas, que tinham por hábito distorcer e
negar as palavras sagradas do Evangelho. Logo, o gnosticismo alcançaria um
status surpreendente, em grande parte devido às heranças pitagóricas e
paganistas.
Segundo
a palavra de Deus, a verdade se distingue do erro e da mentira no entendimento
humano, conforme a ação do Espírito Santo nos homens, que os capacita para o
conhecimento da Verdade em Cristo, de acordo com que nos diz Paulo em 1 Co 1, 5:
“Porque em tudo fostes enriquecidos nele, em toda a palavra e em todo o
conhecimento”.
Ocorre
que, procurando distorcer o entendimento do plano espiritual por obra do
Espírito Santo, falsos mestres se difundiram em Igrejas Cristãs no início do
Cristianismo, como atesta o próprio Apóstolo na primeira Carta a Timóteo,
capítulo 1.
Dentre
os falsos mestres, muitos praticavam o gnosticismo.
Gnosticismo
pode ser entendido, inicialmente, como sendo uma angústia diante dos mistérios
desconhecidos acerca do significado da existência. Conforme a Palavra Sagrada,
tais mistérios não são revelados “in totum” para o homem (1 Co 2, 7-8).
Porém, a angústia gnóstica levou o homem a negar a Sagrada Escritura e buscar o
conhecimento por si, através de práticas iniciáticas e ocultas. Diferentemente
das civilizações cujo centro são revelações sobrenaturais no plano histórico
(elementos esotéricos unidos a elementos exotéricos), o gnosticismo partiu para
a via negativista. Nas civilizações onde o ponto de partida são religiões, a
prática religiosa é aberta para a totalidade social. No gnosticismo, o mundo e o
outro são encarados como estranhos. O mundo é como se fosse uma cadeia, o qual
cada praticante precisa livrar-se. Daí a volta para uma existência separada da
vida social e do mundo.
Assim
como a gnose fazia o praticante recorrer a uma revelação individual para
responder suas próprias dúvidas existenciais e angustiantes, logo passaria a ser
um recurso para aqueles que buscavam superar suas angustias acerca dos
mistérios. Resultado: a busca se voltou para respostas concebidas pelo deus
escolhido, estranho, que não fundamenta o outro, mas apenas o próprio curioso.
Então, como o mundo é estranho e não fornece salvação, o gnóstico recorreu a uma
salvação própria, individual, como se o próprio praticante tivesse poder para
salvar-se a si mesmo e estabelecer sua auto-revelação.
O
gnosticismo levou a um estado de fato no qual o próprio homem seria capaz de
realizar sua incorruptibilidade no plano imanente e, assim, invocar uma saída
escatológica na estrutura do próprio tempo, sem dependência alguma da
eternidade. O gnosticismo levou à certeza de um apocalipse individual promovido
pelo próprio homem, que agora é juiz de si mesmo.
A
gnose, assim, implicou no domínio total por parte do homem acerca do significado
de sua própria existência, fazendo do mesmo juiz de sua própria vida. À luz do
cristianismo, segundo demonstra VOEGELIN, a gnose apareceu como “um esforço para
obter um domínio sobre nosso conhecimento da transcendência maior do que o
propiciado pela ...cognição da fé” (Nova Ciência da Política, p. 95).
Assim,
o gnosticismo seria a porta de entrada para um conhecimento que colocaria Deus
não como Aquele que revela, mas como alguém que está dentro da própria
constituição da inteligência do gnóstico, tornando-o apto ao conhecimento pleno
da verdade.
Dessa
forma, o gnosticismo fez com que a estrutura de dependência e fundamentação do
plano imanente com relação ao plano transcendente caísse por terra, sendo o
plano material concreto o bastante para satisfazer a angústia gnóstica: e esse
foi o sentido que informou grande parte do pensamento filosófico da modernidade
e que deu origem à gnose moderna.
Diferentemente
da antiga, a gnose moderna é assumidamente materialista e baseada na
auto-redenção do homem a partir da superação de sua ignorância e realização de
sua salvação por seu conhecimento racional. A razão humana, aí, é elevada ao
condão de salvadora dos eleitos, aqueles iniciados nos rituais gnósticos da
iluminação racional. O gnosticismo, enquanto racionalismo sectarista, daria base
tanto ao iluminismo quanto ao idealismo, dos quais surgiram filosofias
totalitárias e materialistas da história como o marxismo e o
positivismo.
A
gnose moderna, então, não seria mais o recurso ao deus estranho, mas uma obra
humana em que a auto-redenção “é assegurada pela assunção de um espírito
absoluto que, saindo da alienação, chega a si mesmo no desenrolar-se dialético
da consciência” (VOEGELIN, Eric. Ciência, Política e Gnose, p. 17).
Seria,
segundo consta, um recurso ao espírito absoluto do próprio homem dentro de si
(HEGEL), que sai da alienação de sua agnoia e encontra a si mesmo,
elevando-o ao status de super-homem. Tal pensamento levaria alguém como
NIETZSCHE (tão aclamado nos atuais círculos acadêmicos de cunho materialista) a
negar a eternidade de Deus, dizendo que o mesmo havia morrido. Tal afirmação,
assim, seria a revelação filosófica de um desejo gnóstico antigo, o qual Deus
morre e o homem assume a posição de inteligência suprema. A angústia gnóstica,
assim, estaria superada: o homem acabara de adquirir a posição mais alta a que
poderia chegar, qual seja a de soberbo intelectual.
Por Marcos Boeira
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