A crise
das religiões
Mateus Soares de
Azevedo***
Decadência da dimensão "sapiencial" explica por que as grandes tradições religiosas estão perdendo vigor, afirma Mateus Soares de Azevedo em ensaio especial para a Folha de São Paulo
Um dos
principais fatores que respondem pela perda de vigor, decadência e, finalmente,
trágica crise das religiões tradicionais é a indiferença e mesmo uma arraigada
desconfiança em relação à sua dimensão de conhecimento, ou "sapiencial". A
religião em geral busca dirigir-se a todos os homens sem distinção, para lhes
oferecer os "meios de salvação", e não explicações (metafísicas) sobre a verdade
pura e a natureza profunda das coisas -apesar de essas explicações serem
oferecidas indiretamente e simbolicamente. No caso do cristianismo,
especialmente em sua vertente ocidental latina, essa característica constitui
uma feição particularmente proeminente, pelo menos desde a época do Renascimento
(séculos 15 e 16), que, não obstante ter propiciado um reavivamento do interesse
pela sabedoria antiga, trouxe como consequência inevitável a "morte" de
elementos cruciais, como a arte e cultura medievais, como expostas nas catedrais
góticas, nos ícones bizantinos e também em obras-primas como a "Divina Comédia",
de Dante, e sobretudo no cerne espiritual intangível dessas manifestações.
Essa
dimensão "sapiencial" não deve ser confundida com a mera informação
quantitativa, a habilidade cerebral ou o estudo livresco, já que é muito mais
profunda e engloba dimensões qualitativas. Desde a época em que a influência de
sábios como mestre Eckhart (1260-1327) e Dante Alighieri (1265-1321) foi se
debilitando, um tipo de fé mais e mais emocional e convencional tem predominado,
levando a uma visão das coisas que está situada num nível bem abaixo da real
capacidade e das necessidades da mente humana.
A
despeito de sua importância, essa "fé sentimental" -ou antes, "fideísmo"-, não
acompanhada por um componente intelectual, constitui apenas parte da perspectiva
religiosa integral. Na maioria das vezes, a inteligência é vista como
manifestação de um suposto "orgulho intelectual", algo que constitui uma
contradição de termos. Pois a verdadeira inteligência se caracteriza pela
capacidade de ver as coisas como elas realmente são, portanto pela objetividade,
o que exclui o orgulho, precisamente.
Nos
dias de hoje, a maior parte dos argumentos convencionais da religião está
psicologicamente desgastada -como argutamente apontou o filósofo das religiões
alemão Frithjof Schuon (1907-1998)-, com as considerações de ordem superior
sendo relegadas a uma sorte de limbo. A esse respeito, o autor anglo-indiano
Ananda Coomaraswamy (1887-1947) observou que "a religião é apresentada de uma
maneira tão sentimental que não surpreende que o melhor das novas gerações se
revolte; a solução é apresentá-la em suas formas intelectualmente desafiadoras".
Não há
dúvida de que, em nossos dias, uma indiferença e mesmo um calculado desdém pelo
sagrado está por assim dizer "no ar", especialmente entre as "classes
gritantes". Isso ocorre não apenas porque o homem moderno típico não possui
sensibilidade nem intuição da dimensão sagrada das coisas, tampouco a escola
moderna transmite o menor ensinamento acerca disso, mas também porque a própria
religião tem há muito se valido de formas superficiais e mesmo banais para
apresentar seu legado, formas que estão muito distantes do "intelectualmente
desafiador" propugnado por Coomaraswamy. Se parece certo que, para falar à
generalidade dos homens, as exortações de tipo não-intelectual são as mais
apropriadas, ainda há, não obstante, homens e mulheres -talvez mais do
poderíamos crer- que se movem antes por considerações de outra ordem e que têm
de ser nutridos com alimento intelectualmente "sólido".
Deletéria
Ademais, quando afastada ou privada
do elemento espiritual, a intelectualidade acaba por exercer uma influência
deletéria sobre o restante da sociedade, como se pode verificar sem dificuldade
pela ação de parcela ponderável da intelligentsia Ocidental ao longo do último
século, por exemplo no apoio ao comunismo.
Se o
binômio "sentimentalismo-fideísmo" parece ser o mais apropriado para mover a
vontade de muitos, deve-se não obstante também levar em conta o par
"conhecimento-fé", sem o qual a inteligência pode se voltar contra a
espiritualidade. Se deixada completamente entregue a si mesma, a inteligência
puramente cerebral acaba por se consumir em uma agitação mental sem fim e sem
utilidade, como a filosofia e a arte especificamente modernas mostram à
exaustão. A fé age então como um elemento estabilizador; ela "acalma" o
discernimento.
Nem
sempre, contudo, o binômio "conhecimento-fé" tem sido visto em estado de
contradição interna. O entendimento de que são necessariamente parceiros tem
irrompido aqui e ali, de forma intermitente desde a época do Renascimento,
especialmente com a idéia da "filosofia perene", que surgiu justamente nesse
momento. O primeiro autor a se valer dessa designação foi, curiosamente, um
bibliotecário do Vaticano no século 16, Agostinho Steuco. Sacerdote católico
profundamente influenciado pela sabedoria grega e a teologia judaica, Steuco
concebia a religião primariamente como conhecimento, não como "serviço social",
nem como atividade política ou como um sistema meramente moral e
ético.
A
tradição cristã, de fato, possui, uma dimensão pouco conhecida e por assim dizer
"sutil", que é a espiritualidade "sapiencial" ou "gnóstica". Apesar de o termo
"gnose" ainda assustar alguns, a realidade que ele significa não deve ser
confundida com a heresia gnosticista dos primeiros séculos. Um "padre da Igreja"
como Clemente de Alexandria distinguiu de forma enfática, no seu "Stromata"
("Miscelânea"), a gnose autêntica da espúria. E o próprio são Paulo apóstolo, na
"Epístola aos Romanos" (11,33), referiu-se à gnose como "conhecimento de Deus"
("gnôsis tou Theou"). Eckhart, o dominicano alemão da Idade Média, e o poeta
místico Ângelo Silésio, autor de "O Peregrino Querubínico", são outros dos
principais porta-vozes dessa perspectiva. No Oriente, segue-se um caminho
similar.
Em
todas as grandes religiões mundiais, como budismo, islamismo, judaísmo e
hinduísmo, essa dimensão tem tido destacados porta-vozes ao longo dos séculos.
No Ocidente contemporâneo, despontam as figuras do filósofo orientalista francês
René Guénon (1887-1951), dos já mencionados Frithjof Schuon e Ananda
Coomaraswamy, além do historiador da arte suíço Titus Burckhardt (1908-1984).
Distintamente dos filósofos pós-cartesianos e pós-kantianos, eles não
pretenderam inventar nem propagar um "sistema" pessoal próprio, mas antes
transmitir, em novas formas, idéias e ideais presentes nas diversas fases da
história e em diferentes latitudes. Suas obras buscam incorporar ao sagrado a
dimensão do conhecimento, oferecendo uma tenaz resistência ao crescente divórcio
que verificamos hoje entre inteligência e espiritualidade.
A
filosofia perene, assim, não busca transmitir idéias e concepções de uma única
cultura ou civilização, mas sim um patrimônio que não conhece fronteiras de
povos ou de épocas, saber que, justamente a partir da época de Steuco, passou a
ser conhecido como "philosophia perennis". Suas fontes mais profundas são
constituídas pelas diversas escrituras do Oriente e do Ocidente, como a Torá e
os Evangelhos, o Alcorão, o "Tao-Te-King", os "Vedas", os "Analectos" de
Confúcio, bem como pelos escritos de seus grandes mestres, como Shankara,
Platão, Pitágoras, Ibn Arabi, mestre Eckhart e Chuang Tsu. Essa perspectiva
universalista vem despertando crescente interesse, chegando aos nossos dias como
uma grande esperança para o urgente resgate da dimensão intelectiva a que nos
referimos no início do artigo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário