O
Deus de Israel sempre amou as adúlteras. Jesus também dispensou cuidados
especiais para com elas, e para com as prostitutas, os ladrões e os desgraçados
de todos os tipos. Deus parece não resistir à sinceridade do pecador, assim como
a filosofia parece amar a verdade do melancólico.
Na
Bíblia hebraica, Raquel, a segunda esposa de Jacó (depois chamado de Israel),
por muitos anos uma mulher estéril e idólatra por raiva de Deus, enterrada fora
do “cemitério da família” por ter sido uma vergonha para esta mesma família,
será escolhida por Deus como consoladora do povo eleito no sofrimento. Raquel é
a “mater misericordiae” do judaísmo. Quando Israel sofre, é o nome dela que deve
ser lembrado. Deus ama as infelizes e as elege como suas conselheiras. Qual o
segredo da infelicidade?
Não
se trata de brincadeiras teológicas “progressistas” que erram achando que
ninguém é pecador. A pastoral de hoje, vide as igrejas que crescem por toda
parte (o judaísmo não escapa tampouco desse vício), cada vez mais se assemelha a
grandes workshops de autoajuda ou treinamentos motivacionais. Nada menos cristão
do que um Jesus consultor de sucesso. Ninguém quer ser pecador, só
santo.
Mas
aí reside o erro para com a teologia cristã mais sofisticada: nela, o grande
pecador é o mais próximo do santo. A beleza da antropologia do cristianismo está
neste sofisticado e denso vínculo dramatúrgico: quando o corpo se põe de
joelhos, pelo peso do pecado, o espírito se ergue. Não se trata de dolorismo,
mas, sim, da mais fina psicologia moral.
A
santidade reside mais na alma do pecador do que na autoestima do
“santinho”.
Aliás,
devo dizer que minha crítica à religião é diametralmente oposta àquela de
tradição epicurista ou marxista. Esta, grosso modo, critica a religião porque
ela faz do homem um alienado covarde, e que se vende a Deus para ser um alienado
feliz. Eu me alinho com aqueles que creem que a religião torna tudo um mistério
maior e traz à tona um sofrimento maior, mas que, por isso mesmo, amplia a
consciência de nossa condição humana. Sofro, por isso penso, e logo,
existo.
Recuso
as religiões institucionais não porque elas fazem do homem um medroso,
alienando-o de sua felicidade e autonomia (como creem Epicuro e Marx), mas sim
porque as religiões fazem do homem um feliz, alienando-o de sua própria agonia.
Quando a religião vira marketing, é melhor caminhar só pelo vale das
sombras.
Revi
recentemente o maravilhoso “Fim de Caso” (filme de 1999, dirigido por Neil
Jordan), com a deusa Julianne Moore e Ralph Fiennes. O filme é uma adaptação do
romance de Graham Greene e narra a “sua conversão”. Trata-se de um fino tratado
de teologia, melhor do que grande parte dos livros que afirmam
sê-lo.
No
filme, a compreensão da íntima relação entre pecado e graça é avassaladora. Nada
mais forte do que a graça para iluminar a agonia do pecador para si mesmo: o
santo não é um santinho. A personagem de Julianne Moore é uma adúltera, que ao
longo do filme apresentará traços claros de santidade, chegando a realizar um
milagre. A adúltera, infiel ao seu marido, destruidora da fé no casamento e no
amor que organiza a vida e a sociedade, o tipo mais vil de mulher, é aquela que
mais fundo toca Deus em sua paixão pela agonia humana. No cristianismo, Deus
leva a agonia humana tão a sério que resolveu Ele mesmo passar por ela, na
figura da Paixão de Cristo.
Um
musical a estrear, baseado na obra de Victor Hugo (século 19), “Os Miseráveis“,
com Hugh Jackman no papel de Jean Valjean, fugitivo da cadeia, e Russell Crowe
no papel de seu perseguidor implacável Jabert, traz uma das maiores cenas da
teologia cristã já representada na arte. Jean Valjean, após ter roubado os
castiçais da casa de um padre, e ser pego pela polícia, é perdoado pelo padre
que confirma para a polícia a mentira contada por Valjean: “Sim, eu dei os
castiçais para ele”.
Este
ato transforma Valjean. O encontro entre a misericórdia e o pecador é uma das
maiores afirmações do sentido da vida.
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