De acordo com Nietzsche, tanto o platonismo quanto o cristianismo são ascéticos, negadores da vida. Nessa forma de encarar a existência, o mundo terrestre é visto como um vale de lágrimas, contrapondo-se ao mundo de felicidade eterna no além. O Sócrates próximo da morte, descrito no Fédon de Platão, deixa isso muito claro quando afirma que
a alma, aquilo que é invisível e que se dirige para um outro lugar, um lugar que lhe é semelhante, lugar nobre, lugar puro, lugar invisível, o verdadeiro país de Hades [...] país do Deus bom e sábio, lá para onde minha alma deverá encaminhar-se dentro em breve, se Deus quiser...[1].
Na visão de Nietzsche, Sócrates foi cristão antes do cristianismo. Ele teria sido o primeiro filósofo da moral: “Quando a melhor época da Grécia acabou, vieram os filósofos da moral: a partir de Sócrates, com efeito, todos os filósofos gregos são, antes de tudo, e no mais profundo de si mesmos, filósofos da moral”[2]. Sócrates questionou a legitimidade dos deuses gregos, exaltou incondicionalmente as virtudes, a justiça, o bem e a felicidade. Mas que relação há para Nietzsche entre a moral socrática, a moral judaica e a moral cristã?
Nos parágrafos 24 a 26, do “Anticristo”, Nietzsche faz uma análise da história dos judeus buscando entender a origem do cristianismo: “Limito-me a tocar aqui somente o problema da origem do cristianismo”[3]. Nietzsche entendia que Javé, o Deus nacional de Israel, formava uma unidade com o povo. Ele era o Deus da justiça e dele se esperava a vitória e a salvação. O povo lhe era grato pelo êxito político, pelas chuvas e pela prosperidade na agricultura e na criação do gado. Com o exílio, o “povo eleito” teria perdido a unidade com o seu Deus, já que não era mais possível compreender como um Deus justo poderia permitir tamanho infortúnio. Para Nietzsche, ao invés de abandonarem o seu Deus, “a noção que se possuía dele foi modificada – sua noção foi desnaturada [...] não era mais que um Deus no condicional...”[4]. Com isso, a noção de Deus se tornou um instrumento nas mãos dos sacerdotes, que passaram a interpretar toda a felicidade como recompensa e todo o castigo como resultado da desobediência: “uma vez que se eliminou do mundo, com a recompensa e com a punição, a causalidade natural, torna-se necessária uma causalidade antinatural”[5]. Para Nietzsche estaria aí o surgimento da moral judaica.
O cristianismo, uma espécie de “instinto judaico redivivo”[6], teria como representante o apóstolo Paulo, judeu de nascimento e pertencente a seita dos fariseus. Para Nietzsche, fora Paulo e não Jesus o fundador do cristianismo: “O que Paulo levou a termo, com o cinismo lógico de um rabino, era contudo simplesmente o processo de degradação que havia começado com a morte do Salvador”[7].
Viver no além e desfrutar de uma vida pura longe das paixões terrenas era um sonho vivenciado tanto por Sócrates, cerca de 400 anos antes de Cristo, como por Paulo, no século primeiro. A moral cristã, nascida a partir de uma matriz judaica e apoiada pela filosofia socrática[8], teria se perpetuado na civilização ocidental, niilista, por desejar o "nada". Tal projeto impulsionaria o homem a negar o querer-viver em detrimento de uma "vida imaginária".
Cristianismo sem dualismo platônico. Será?
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