Fundamentalismo
secular:
Breve resposta a três
ateístas militantes.*
Fala-se muito hoje em dia, e com razão, de fundamentalismo
religioso. Mas a última coisa que o mundo precisa é da “reação” de algo como um
fundamentalismo anti-religioso. Pois infelizmente é justamente este tipo de
nova intolerância que alguns polemistas estão propondo. Ideias têm consequências.
É a primeira coisa que um intelectual deveria saber. Não parece ser o caso de
polemistas e cientistas como Christopher Hitchens, Richard Dawkins e Sam
Harris. Estes autores, extrapolando claramente os limites da ciência, estão
defendendo abertamente a “erradicação” das tradições religiosas da humanidade.
Na opinião deles, elas são irracionais, não trouxeram nada positivo, são
marcadas por debilidade intelectual e, ademais, constituem um perigo para nossa
sobrevivência.
Nada de positivo?
Mas o que dizer
então da catedral de Chartres, do Taj Mahal e da Alhambra? E da sabedoria
perene de Lao Tsé, Shânkara, Santo Agostinho, Ibn Arabi, Ralph Waldo Emerson?
Estes monumentos, arquitetônicos e intelectuais, são manifestações diretas de
um espírito religioso que nunca cessou de existir entre os mais diferentes
povos.
Lembremos também
que a presença da religião se estende até aspectos mais mundanos e prosaicos,
como, por exemplo, a cultura do vinho e a da cerveja, implementadas na Europa
pelos monges. Sem esquecer as universidades e os hospitais criados pela Igreja.
Nem tampouco as cidades que devem todo seu encanto ao espírito -- Istambul,
Fez, Cairo, Varanasi, Kioto, Jerusalém, Siena, Toledo, Ávila e tantas outras.
Debilidade intelectual?
Em sua “cruzada cienticista”, estes justiceiros de avental
branco nunca ouviram falar do Bhagavad-Gita, do I-Ching, do Sermão da Montanha?
Dante e a Divina Comédia não significam nada para os novos inquisidores?
Irracionalidade?
Como explicam então o gênio de Pascal e do Padre Vieira? E
Shakespeare, Calderón, Rûmi, Guimarães Rosa?
A música de Bach, Mozart e o canto gregoriano, um perigo para
nossa sobrevivência? Tanto quanto a dança indiana e o giro extático dos
dervixes?
Salomão tinha razão quando disse, há três mil anos, que nada
há de realmente novo sob o Sol. Estes cientistas e polemistas crêem estar
propondo algo original, mas não dizem nada de essencialmente diferente dos
ateístas da Grécia, Índia e outras paragens de outrora. Repetem o discurso dos
sofistas de 2.500 anos atrás. Freud e Marx também já haviam tentado
"erradicar" a religião com uma "canetada". Esquecem que não
há civilização, em toda a longa história humana, que não tenha tido a sua
religião. "Não há cultura sem culto", disse T.S. Eliot. O que há de
"inovador" na proposta atual é a falta de imaginação e uma arrogância
bem "moderna".
Estes autores extrapolam, ademais, o campo de ação próprio da
ciência, tornando-a na prática uma pseudo-religião – a sua anti-religião
transforma-se numa nova "religião", ainda mais intolerante do que a
que pretendem combater.
"Quando o dedo aponta para a Lua, os tolos olham para o
dedo", diz um provérbio Zen. Que mundo absolutamente sem graça e sem sal
este para o qual Dawkins, Hitchens e camaradas olham! Sem a sabedoria de
Confúcio, a presença espiritual e o exemplo de desapego dos santos, as pinturas de Fra Angelico, os
templos e a música da Índia. Um mundo sem perfume, sem beleza, sem virtude.
Mais importante ainda, sem propósito e sem sentido. Pelo visto, estes homens
passaram tempo demasiado num laboratório e não atentaram para o fato de que
muito do bem que ainda temos deriva da sabedoria transmitida pela religião. Não
daquela superficialmente e fanaticamente entendida, é claro, mas da religião da
Verdade, do Bem e do Belo de que falava Platão.
Corruptio optimi
pessima, a corrupção
do melhor é o pior tipo de corrupção. Isso se aplica à chamada "direita religiosa",
especialmente nos EUA, com suas superficialidades, sua auto-complacência e seus
graves erros políticos. Mas os cientistas de que falamos não estão criticando a
direita religiosa, eles estão querendo o fim da religião em si!
Finalmente, há que responder a seus pseudo-argumentos dizendo
que as grandes desgraças do século XX não foram causadas pela religião. Nem a
1ª nem a 2ª Guerras Mundiais tiveram qualquer relação com qualquer religião. O
nazismo e o stalinismo foram visceralmente anti-religiosos. O presidente Truman
mandou jogar bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki; o que a religião tem a
ver com isso? Pelo contrário, foram os "fanáticos fundamentalistas"
da ciência e da tecnologia que as produziram e as lançaram.
Em suma, esses oportunistas escamoteiam que nenhuma de nossas
tragédias recentes teve motivação religiosa. As "bombas inteligentes"
e os "ataques cirúrgicos" foram criados e fabricados pelos camaradas
de Dawkins. As modernas ditaduras, "racionais e científicas",
violentamente anti-religiosas, perseguiram e torturaram milhões de cristãos,
judeus e muçulmanos nos tempos da União Soviética e milhões de budistas,
taoístas e confucionistas na época da "Revolução Cultural" – os
piores papas, reis e califas da história foram apenas meninos travessos se
comparados a esses corifeus das destruições em massa.
Será que Jesus, o Buda e Maomé, todos fundadores de
religiões, não sabiam o que faziam? Essa panela de fundamentalistas da ciência
é mais sábia do que eles? A perversão e a depravação humanas, como Frithjof Schuon
e Wiliam Stoddart têm explicado em seus livros, são o bastante para explicar
nossas misérias. E se as religiões não são totalmente inocentes -- "Por
que me chamais bom? Só Deus é bom", disse o Cristo --, é graças a elas,
com seus exemplos de sabedoria, amor e compaixão, que as coisas não estão muito
piores...
Por Mateus Soares de Azevedo
* Texto originalmente
publicado como capítulo do livro Homens
de um Livro Só (Best Seller, 2008).